quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Hoje, sinto...

Hoje, sinto um estranhamento quando ouço os outros dizerem que isso é belo, aquilo é feio. Parece-me que, com esses juízos, ainda idealizamos as coisas. O que é afinal, beleza? Olho essa flor. Ainda devo sentir-me obrigado a adjetivá-la com uma categoria que torna o mundo suportável para nós e que honra nossa sensibilidade? Idealizamos o mundo mesmo quando sentimos que estamos transformando-o e preenchendo-o com toda nossa vocação estética. Mas o que é estética? Deus é uma estética, o homem é uma estética, todas as coisas as quais podemos atribuir uma ou outra formalidade é uma estética. Então a estética é, nada menos nada mais, do que nossa capacidade de atribuir sentido às coisas. Mas nessa atribuição não damos às coisas um sentido que lhes ultrapassa o sentido? Talvez. Sim, as vezes olho as coisas e simplesmente olho. Olho novamente a flor. Devo comprometê-la? A beleza não seria uma categoria pra quem não experimentou as coisas na sua originalidade? A beleza não seria uma categoria estética entre muitas outras categorias estéticas? Posso afirmar com quase toda certeza que o feio é uma categoria que está mais próxima das coisas. Tirem as cores das flores, o gosto doce do mel, a luz irradiante do nascer do sol. O que nos resta? Apenas coisas informes, algo muito assustador para nossa sensibilidade, sem dúvida; diria que restaria, caso fosse um kantiano, apenas as coisas-em-si-mesmas. Ao homem é impossível fugir de uma consideração estética do mundo. Penso sobre o modo como caracterizamos as coisas, e ao pensar sobre isso concluo: se continuo a escrever, vou acabar fazendo mais um daqueles sistemas estéticos, então prefiro parar de pensar e parar também de escrever. Se olho a flor e minha sensibilidade me obriga a achá-la bela, que seja. E se, ao escrever, eu tenha que honrar a beleza da flor, que seja. Pensar é deixar estar, escrever é saber calar.

Quase

(Poesia de Mario de Sá-Carneiro)

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


sexta-feira, 30 de abril de 2010

Nosso tempo

Eu tentei encontrar a verdade, mas nessa busca nós voamos como frágeis folhas ao vento; cada uma separadamente, seguindo suas próprias direções. O que devo dizer a mais? Agora somos estranhos em relação ao outro. Somos jovens, ou melhor, estamos amadurecendo a nossa velhice. Um dia existiu fogo dentro de nós. Naquela tarde em que exausto eu dormia e você estava lá se instalando cotidianamente na existência, e isso era tudo o que queríamos. Correr, dançar e rir com e sobre o tempo. Esse foi o nosso, e esse também é o tempo de todos: o tempo em que fazemos o tempo em que fizemos.

domingo, 25 de abril de 2010

Majestade

Jesus transformou água em vinho. Eu transformo sangue em palavras. Dito de outro modo: também faço milagres.